Mostrando postagens com marcador doenças. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador doenças. Mostrar todas as postagens

sábado, 2 de outubro de 2021

Existe realmente poluição visual? - 1



    Glória W. de Oliveira Souza[1]


O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab[2], encaminhou projeto de lei à câmara do município com o objetivo de proibir a publicidade exterior na cidade. Para justificar o ato, o prefeito, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo[3] menciona que 90% da publicidade exterior paulistana está fora-da-lei e que “com leis confusas, obscuras e contraditórias, o mercado é regulado por uma margem imensa de subjetividade que abre oportunidades de corrupção”. Além disso, ele aponta que o setor é responsável pela “poluição visual da cidade”, sem, entretanto, apontar qualquer indício nesse sentido. Ao contrário do que se imagina, o prefeito não pesquisou o suficiente para tal alegação, pois se o fizesse, certamente não encontraria qualquer estudo, notícia ou referência de dano causado ao ser humano pela publicidade exterior no meio urbano. Martins (2002)[4] e Freitas (2004)[5] ao investigarem mortes e doenças em idosos e jovens decorrentes da poluição atmosférica concluíram que há sim efeitos adversos na saúde da população. Com o mesmo objetivo, Nascimento (2006)[6] fez estudos com grupos de crianças internadas com pneumonias, confirmando que poluentes do ar afetam a saúde infantil, além demonstrar “a elevada susceptibilidade das crianças aos efeitos adversos advindos da exposição aos contaminantes atmosféricos”. A mesma conclusão tinha chegado Bakonyi[7] em 2004. A preocupação com a poluição atmosférica também fez parte dos estudos de Medeiros e Gouveia (2005)[8], ao medir a relação entre poluição do ar e peso de crianças ao nascer. Para os autores, “os resultados reforçam que a exposição materna à poluição do ar no primeiro trimestre de gestação pode contribuir para o menor ganho de peso do feto”.

Portanto, a preocupação com a poluição atmosférica é realmente um caso de saúde pública, inclusive foi estudado por Rumel[9] em 1993 para verificar a associação existente entre os valores de temperaturas máximas diárias e valores médio e máximo diários de monóxido de carbono no Município de São Paulo e a ocorrência de Acidente Vascular Cerebral (AVC) e Infarto do Miocárdio (IM). A conclusão foi que “das internações anuais por IM, 2,1% são devidos à poluição atmosférica e 4,9% a altas temperaturas. Das internações anuais por AVC, 2,8% são devidas a altas temperaturas. Não foi identificada associação entre monóxido de carbono e AVC”. Até mesma a poluição sonora foi pesquisada. Paz, Ferreira e Zannin (2005)[10], fizeram estudo comparativo da percepção do ruído urbano. Concluíram que “a população da zona controlada indicou aumento no nível de ruído percebido. O nível sonoro no centro da cidade tem se mantido praticamente constante e muito acima do especificado pela Lei Municipal. Os indicadores gerados podem servir como parâmetros para caracterizar a percepção à exposição contínua ao ruído pela população”. Portanto, poluição atmosférica e sonora afeta a saúde, mas não há qualquer menção quanto a poluição visual. Assim, cabe a pergunta: há estudos que indicam malefícios nos seres humanos provocados pela exposição à comunicação visual urbana? Nem mesmo acidentes de trânsito – há os que acusam a publicidade exterior de desviar a atenção de motoristas e pedestres – foram noticiados tendo como causador a propaganda ao ar livre. O que se depura do projeto de proibição proposto pelo prefeito de São Paulo é que o mesmo tenha outra finalidade, que não a preservação da saúde e do bem-estar da população.

Nunca se deve esquecer que a disputa pela sobrevivência, incluída aí o poder, levou muitos povos a sobrepujar seus inimigos. Em tempos remotos, isso ocorria através da força física. Ferrés (1998)[11] diz que “nas democracias ocidentais, há escassas limitações físicas às liberdades individuais, mas são substituídas por pressões sutis, mais sofisticadas, menos conscientes. Não costumam ser limitações físicas, mas sim psíquicas”. Essa sutileza na retenção da liberdade individual amedronta os receptores da comunicação, que julgam viver de forma racional e consciente de suas ações e aspirações. Pensar racionalmente não significa ser livre. Souza (2003)[12] aponta que “o medo tomou conta da humanidade. Qualquer fato ou ação é motivo de temeridade, por mais banal que seja. Essa desconfiança, como não podia deixar de ser, atingiu a indústria da propaganda”. Tudo em nome da racionalidade. Mas Dichter (1970)[13] afirma que “a racionalidade é um fetiche (...) nossa cultura não nos permite admitir a verdadeira irracionalidade como uma explicação de nossa conduta. E, no entanto, a maioria dos sistemas religiosos e políticos, assim como aspectos da conduta humana, tais como a lealdade, o amor e o afeto, são todos irracionais”. O indivíduo julga ser livre, mas há limitações que o prendem na irracionalidade, mesmo porque, como alerta Martineau (apud Ferrés, 1998) “a razão é seletiva; em outras palavras, não é racional. Raramente mudaremos as crenças das pessoas com argumentos racionais”. E essa temeridade já chegou à visualidade urbana.

Freud disse, certa vez, que quando razão e emoção se defrontam, normalmente é a razão, e não a emoção, que sucumbe. Portanto, quando se trata de assuntos no qual o coletivo está envolvido, no conturbado mundo atual, mais do que nunca, as pessoas estão agindo muito menos do que pensam movidos por suas convicções, suas ideias e seus princípios, e muito mais do que pensam movidas por seus sentimentos, seus desejos, seus temores (Ferrés, 1998). Esse pavor parece ter se instalado no conceito de que, quando constatado a abundância, instala-se a perniciosidade. Mas isso não se confirma. Luyten (1988)[14] aponta que recebemos diariamente milhares de comunicações, de todas as espécies. Segundo o autor “vivemos cercados por um mundo que, incessantemente, nos lança elementos comunicativos: mensagens. O que acontece, porém, é que a maior parte dessas comunicações é recebida e, imediatamente, esquecidas”. Ortiz (apud Souza, 1999)[15] diz que a informação não é cumulativa, “ela é sempre filtrada pelo crivo da estratégia”. No entanto, o que importa é que o número de mensagens guardadas em nossa memória é muito pequeno diante do grande número de mensagens recebidas. A média diária de mensagens recebidas e lembradas – portanto efetivamente recebidas – é de 100 por dia (Souza, 1999). “A informação precisa ser traduzida para um código específico (os símbolos) que permita sua transmissão (os sinais) através de um meio técnico determinado” (Ortiz, apud Souza, 1999).

continua...



[1] Originalmente divulgado por ortonímia (nome que corresponde ao autor efetivo da obra quando um escritor não assina os seus trabalhos sob pseudônimo ou heterônimo, ou seja, o autor possui existência real) em forma de paper apresentado no 1. Simpósio sobre Comunicação Visual Urbana, realizado no dia 25 de outubro de 2005, em São Paulo, promovido pela FAUUSP. Disponível em http://www.usp.br/fau/depprojeto/labim/simposio/PAPERS/SCV2VI07.htm
[2] Mandato de 1 de fevereiro de 1999 a 1 de janeiro de 2005 (2 mandatos consecutivos).
[3] KASSAB, G. Abaixo a poluição visual. Folha de S. Paulo, 28 de maio de 2006, Caderno Opinião, Coluna Tendências/Debates, pág. A3.
[4] MARTINS, L. C. et al. Poluição atmosférica e atendimentos por pneumonia e gripe em São Paulo, Brasil. Rev. Saúde Pública, fev. 2002, vol.36, no.1, p.88-94.
[5] FREITAS, C., et al. Internações e óbitos e sua relação com a poluição atmosférica em São Paulo, 1993 a 1997. Rev. Saúde Pública, dez. 2004, vol.38, n. º 6, p.751-75.
[6] NASCIMENTO, L. F. C., et al. Efeitos da poluição atmosférica na saúde infantil em São José dos Campos, SP. Rev. Saúde Pública, jan./fev. 2006, vol.40, no.1, p.77-82.
[7] BAKONYI, S. M. C. et al. Poluição atmosférica e doenças respiratórias em crianças na cidade de Curitiba, PR. Rev. Saúde Pública, out. 2004, vol.38, no.5, p.695-700.
[8] MEDEIROS, A.; GOUVEIA, N. Relação entre baixo peso ao nascer e a poluição do ar no Município de São Paulo. Rev. Saúde Pública, dez. 2005, vol.39, no.6, p.965-972.
[9] RUMEL, D., et al. Infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral associados à alta temperatura e monóxido de carbono em área metropolitana do sudeste do Brasil. Rev. Saúde Pública, fev. 1993, vol.27, no.1, p.15-22.
[10] PAZ, E. C. da; FERREIRA, A. M. C. e ZANNIN, P. H. T. Estudo comparativo da percepção do ruído urbano. Rev. Saúde Pública, jun. 2005, vol.39, no.3, p.467-472.
[11] FERRÉS, J. Televisão subliminar. Porto Alegre: Artmed, 1998.
[12] SOUZA, W. de O. S. Desconfianças da propaganda dissimulada: temores de mensagens subliminares rondam o merchandising. Caderno UniABC de Comunicação Social, ano V, n.º 33, 2003.
[13] DICHTER, E. Las motivaciones del consumidor. Buenos Aires: Sudamericana, 1970.
[14] LUYTEN, J. Sistemas de comunicação popular. São Paulo: Ática, 1988.
[15] SOUZA, W. de O. Informações periféricas no ABC: Inventário dos veículos periféricos na construção da informação local na região do ABC paulista. (Dissertação de Mestrado). São Paulo: UMESP, 1999.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Existe realmente poluição visual? – 3

 

Glória W. de Oliveira Souza[1]

 


Ao imputar ao sistema visual urbano o caráter de poluente, o fazem a partir do conceito genérico de poluição. Mas a definição para este termo é a “presença ou introdução, no meio ambiente, de substâncias nocivas à saúde humana, a outros animais e às plantas, ou que prejudicam o equilíbrio ecológico”, já que poluir, que provém do latim polluere, de acordo com Ferreira (1975)[2], significa “sujar, corromper, tornando prejudicial à saúde”. Ao que consta, o acesso do ser humano a símbolos, formas, ícones e cores na urbe não têm provocado qualquer dano biopsíquico. Para qualquer um dos sentidos, e muito menos para a visão, porque esse órgão não funciona de forma isolada dos demais sentidos, ainda mais que “o cérebro é o maior aliado da visão. São os olhos que veem, mas quem enxerga mesmo é o cérebro”[3]. Portanto, a visibilidade – qualidade de visível, que provém do latim visible – diz respeito ao que se pode ver, de forma clara, aparente, perceptível.

 

Para que as mensagens do ambiente urbano possam ser percebidas há que compreender como ocorre a percepção. Embora no uso moderno o termo percepção geralmente se refira a processos sensoriais, como a visão e a audição, Descartes reserva o verbo ‘perceber’ para designar a apreensão puramente mental do intelecto, como na célebre regra: “tudo o que clara e distintamente percebo é verdadeiro” (Cottingham, 1995)[4]. Assim, percepção pode ser diferenciada da sensação, a qual diz respeito à estimulação dos órgãos sensoriais e pode estar restrita aos primeiros estágios de processamento das informações recebidas“ (Stratton; Hayes, 1994)[5]. Para esses autores, a percepção compreende várias áreas, como a percepção visual, percepção da pessoa, percepção auditiva, bem como a percepção “de outras formas de informações, como as relacionadas ao olfato, ao tato, à gustação e à dor”. Isto é, todos os sentidos estão envolvidos. Carneiro e Ribeiro[6] lembram que os homens possuem insuficiência perceptiva. “Não podem apreender do real nada mais que suas impressões. Deste modo, a conduta humana oscila entre matéria e memória, percepção e lembrança”. Domingues[7] adiciona que “o cérebro reptiliano controla os instintos (...), mas como temos que ‘parecer’ racionais, o córtex, senhor da razão, mais que depressa cria um motivo racional”. Assis Brasil (1984)[8] complementa ao indicar que perceber “é conhecer, pelos sentidos, objetos e situações. Para tanto é necessário que o objeto esteja próximo, quer no espaço ou no tempo, ou que se tenha acesso a ele diretamente”.

E a comunicação urbana, principalmente nas grandes metrópoles, contém esse caráter de proximidade, provocando no receptor da urbe uma percepção estética, já que esta “é pura percepção, compondo-se como forma privilegiada de apreensão de uma presença. Não se visa, através dela, a práxis, configurando-se, ao contrário, como forma desinteressada da confrontação com o objeto” (Penna, apud Assis Brasil, 1984), porque a operação de perceber tem a característica da informação limitada e sempre se percebe a partir de uma perspectiva. E essa perspectiva é a visualidade – que tem sua origem no latim visualitate e aponta para o aspecto cambiante, como miragem – onde a publicidade, no conceito de tornar-se pública, conforme Habermas (apud Mattelart, 2003)[9], que “se define como pondo à disposição a opinião pública os elementos de informação que dizem respeito ao interesse geral”. Habermas aponta ainda que sua intrusão na esfera da produção cultural transforma as formas de comunicação cada vez mais inspiradas em um modelo comercial de ‘fabricação da opinião’. E assim tem sido feito no caso da poluição visual.

continua... 


[1] Originalmente divulgado por ortonímia (nome que corresponde ao autor efetivo da obra quando um escritor não assina os seus trabalhos sob pseudônimo ou heterônimo, ou seja, o autor possui existência real) em forma de paper apresentado no 1. Simpósio sobre Comunicação Visual Urbana, realizado no dia 25 de outubro de 2005, em São Paulo, promovido pela FAUUSP. Disponível em http://www.usp.br/fau/depprojeto/labim/simposio/PAPERS/SCV2VI07.htm

[2] FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.

[3] REDE GLOBO. Percepção do mundo. Fantástico. Disponível em <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1028495-4687,00.html>. Acesso em 28 set 2005.

[4] COTTINGHAM, J. Dicionário Descartes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

[5] STRATTON; P.;HAYES, N. Dicionário de psicologia. São Paulo, Pioneira, 1994.

[6] CARNEIRO, L. de J.; RIBEIRO, S. O. Da seleção das imagens: algumas palavras sobre a percepção em Bergson. Disponível em <http://www.ifcs.ufrj.br/hi/comen3.htm>. Acessado em 23 jun. 2005.

[8] ASSIS BRASIL. Dicionário do conhecimento estético. Rio de Janeiro: Ediouro, 1984.

[9] MATTELART, A.; MATTELART, M. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 2003.